A importância da espiritualidade no caminho dos médicxs de família e comunidade
Jornal Reflexivo da Residência de Medicina de família e comunidade -SESAU/Prefeitura do Recife, sobre o encontro de residentes e preceptores, o “Slow Hearing”
Trafego o espaço do silêncio e da expectativa, peço licença. Nossas histórias precisam ser contadas e ouvidas. Cada um sabe como experencia essa sinestesia que é a vida – a esperança que irrompe as frustrações do dia a dia, a amorosidade que embembece a dureza do coração por traumas passados, a suavidade do tempo ao curar algumas dores crônicas.
“Não há o que perdoar
Por isso é mesmo que há de haver mais compaixão
Quem poderá fazer aquele amor morrer
Se o amor é como um grão?
Morre e nasce trigo
Vive e morre pão”
Drão — Gilberto Gil
Na residência, todo dia a gente se deixa morrer um pouquinho, germinar e criar novas raízes — num processo tão lento que é invisível aos nossos olhos. É importante esses momentos para parar e contemplar os frutos e as raízes que já começam a surgir.
A escuta, se minuciosa, permite que vejamos melhor o outro e também a nós mesmos. Escuta: em cada um de nós, há um núcleo de amorosidade que deseja irromper na transformação amorosa da realidade de quem raramente é visto, ouvido, tocado. Chego a essa conclusão através das entrelinhas de falas, músicas, soluços, sorrisos, choros e corações que sangraram ao se expor.
Precisamos, com frequência, fechar os olhos, limpar a vista, para, ao abri-los, conseguir ver com clareza as menores coisas. Desde as pequenas alegrias da vida adulta até o mais insignificantes atos de cuidado – a exérese dos acrocórdons de L., aquele preciosismo em analisar nossa postura, nosso olhar, a posição dos móveis do consultório. Nós, na APS, vivemos de celebrar as pequenas vitórias, quase como se um sorriso vencesse uma macroestrutura de morte que se impõe sobre nós e nos suprime, sufoca. Por que teimamos assim? Talvez seja competência cultural: aprendemos com o povo que assistimos a abrir grandes sorrisos por pequenas coisas- um elogio, uma gentileza, uma visita.
Assim, nos reconhecemos nos olhos que insistem em brilhar, mesmo que acompanhados de olheiras, para lembrar que o amor não é uma realidade de criança, mas de gente adulta que insiste que a vida é sempre mais importante. Amor é prática de fé de gente corajosa, que ousa ser o perfume do sândalo que perfuma o martelo que o corta.
“Amor é decisão, atitude
Muito mais que sentimento
Alento, fogueira, amanhecer
O amor perdoa o imperdoável
Resgata a dignidade do ser
É espiritual
Tão carnal quanto angelical
Não tá no dogma ou preso numa religião
É tão antigo quanto a eternidade
Amor é espiritualidade”
Principia - Emicida feat Pastor Henrique Vieira, Pastoras do Rosário, Fabiana Cozza
Escutar cada uma das histórias contadas no “slow hearing” é também ir cascavilhando nosso interior. Cada história do outro tem uma música, imagem, verso, frase que é também meu. Cada conexão forma uma teia de afeto entre nós, mas também ilumina pontos de nossa história que podem ser sinais dos nosso caminhos interiores para a construção do sentido do nosso fazer como medicxs de família e comunidade, do nosso reconhecimento como pessoas e dos nossos lugares no mundo.
Viktor Frankl percebeu, após sua vivência no campo de concentração de Auschwitz e seus estudos na logoterapia, que as pessoas que não se rendiam (interiormente) à morte no campo de concentração foram aquelas que tinham um sentido para suportar aquilo. E, aquelas que encontravam sentido no sofrimento, puderam viver o campo de concentração preservando sua liberdade interior e sua decisão pelo “Bem”. Reafirmando aquele aforismo de Nietzsche: “quem tem um porquê suporta todo como”. Claro, nossa situação é bem diferente daqueles sobreviventes dos campos de concentração, mas saindo do contexto pandêmico de estar, todos os dias, vulneráveis a um vírus e um governo mortais e da reconstrução de significados que a vida nos exige nesse momento, buscar nossos sentidos talvez seja o primeiro passo. Viktor Frankl diz: “a pessoa não deveria perguntar qual o sentido da sua vida, mas antes deve reconhecer que é ela que está sendo indagada. Em suma, cada pessoa é questionada pela vida; e ela somente pode responder à vida respondendo por sua própria vida; à vida ela somente pode responder sendo responsável.”
Então, nesse resgate de nós mesmos como (atuais ou futuros) médicxs de família e comunidade, cabe nos questionar o que a vida quer de nós. Nossos caminhos exteriores serão firmes quando bem fundados sob nossas verdades interiores. O “slow hearing” acendeu as luzes para esse resgate. Existe uma multidão de homens e mulheres enlutados, confusos, desempregados, violentados em suas próprias casas, resumindo: adoecidos fisicamente, psiquicamente e espiritualmente. Para ajudá-los, comecemos nós a conhecer nossa mente, nosso corpo, nossa alma.
Comecemos, pois, nosso caminho espiritual. Eymard Mourão, no seu livro “espiritualidade no trabalho e saúde”, cita Leonardo Boff ao dizer que espiritualidade é a “experiência de contato com esta dimensão que vai além das realidades consideradas normais na vida humana. Que as transcende. Seria a arte e o saber de tornar o viver orientado e impregnado pela vivência da transcendência (Boff, 2001).”
A transcendência não consiste unicamente em experiências profundamente místicas, estas reservadas para poucos. Consiste, antes, na criatividade humana ao responder às perguntas que a vida lhe indaga, mesmo nas situações mais difíceis. É a espiritualidade que se vive de olhos abertos, pés sujos e ombros cansados. Citando, novamente, Eymard Mourão: “nas mais profundas situações de opressão, os sonhos e desejos do ser humano latejam incessantemente, empurrando-o para uma teimosa e persistente busca de superação. Historicamente o ser humano tem-se mostrado um ser de protest-ação, de ação de protesto. Recusa-se sempre a aceitar a realidade na qual está mergulhado, seja ela a mais adocicada ou a mais violenta. Esta dimensão de abertura e força do ser humano (nem sempre percebida e valorizada) de romper barreiras, de superar proibições e de ir além de todos os limites é a sua transcendência. Transcendência é esta abertura e atração pelo infinito em seres tão marcados pela limitação. Abertura que os torna sempre insatisfeitos e protestantes. Esta insatisfação sem fim, presente no humano, sintoma da transcendência, é a fonte de sua grandeza. Refere-se a um elã vital, uma vitalidade surpreendentemente dinâmica presente em todo o ser humano que, no entanto, pode estar entorpecida por situações existenciais particulares.”
Penso que o “slow hearing” foi, para cada um de nós, um momento de encontro com essa transcendência, essa insatisfação que nos une e nos torna capazes de permear de vida mesmo os caminhos mais obstruídos pelo ódio e pelas nossas perdas. Um momento para azular a realidade que anda, para muitos, acinzentada e pesada. Um momento para lembrar que atravessaremos esse dilúvio de tragédias que vivemos no Brasil, e reavivar “nossa mania de ter fé na vida”.
Referências:
- A espiritualidade no trabalho em saúde / Eymard Mourão Vasconcelos, organizador. São Paulo: Hucitec, 2015.
- Em Busca De Sentido: Um psicólogo no campo de concentração / Viktor E. Frankl. Traduzido por Walter O. Schluppne Carlos C. Aveline. 25 Ed. — Sao Leopoldo, Sinodal, Editora Vozes, 2008.