A linha de frente da vida

Giovanna Brito
5 min readJun 10, 2021

--

(“tudo, tudo, tudo que nós tem é nós”)

Quando decidi fazer a residência em medicina de família e comunidade, o fiz porque tinha o desejo de aprender a escutar quem a sociedade cala, ver quem a sociedade esconde, elevar a voz de quem é silenciado. Não entendia, ainda, que mais do que um desejo, contar a história das pessoas seria uma necessidade. Hoje, percebo: ou eu me expresso, ou dou vazão a esse mar revolto dentro de mim de quem está na linha de frente de um sistema de saúde em colapso, ou eu mesma colapso.

Além dos meus ideais de vida, entendo que escutar é credibilizar a existência de algo. Preciso escutar as vozes interiores que ora me lembram do sentido da minha escolha pela MFC, ora me dão a poesia para encantar os dias, ora me enchem de desesperança e desânimo ao lidar com as questões reais da vida das pessoas.

Explico:

  1. Adolescente, 14 anos, procura a unidade para fazer auriculoterapia, pois lhe disseram que tira o estresse. Quando pergunto o que está lhe estressando, seus movimentos repetitivos com as mãos e as pernas revelam sua ansiedade, ao passo que só consegue dizer: estou triste porque minha mãe está desempregada e não temos o que comer em casa.

Pessoas reais em situações reais, que não se tocam num leito de hospital, mas no território. Entrar na casa das pessoas envolve conhecer profundamente suas lutas, dores, mas também a potência de vida que existe em cada ser humano. Em cada um, a capacidade de ser resiliente, de encontrar sentido no sofrimento. É, como comentava com uma amiga, estar na primeira fileira do espetáculo da vida, é ter no dia a dia um ensaio de toda existência. Isso é lindo, mas existem certos sofrimentos para os quais não cabe eufemismo.

Por exemplo, é lindo ver uma família conseguir se reestruturar após um episódio de adoecimento de um dos membros e os papéis familiares serem reconfigurados num contexto de doença dificilmente evitável. Outra coisa é o sofrimento de uma família porque não tem o que comer. Não existe como eufemizar nem buscar sentido em estar morrendo de fome porque é um sofrimento evitável. Nossas técnicas de consolo não funcionam. Porque o consolo para um sofrimento evitável é não haver sofrimento.

Esse é o ponto em que entendo que aquela conversa sobre determinantes sociais de saúde que a professora de saúde e sociedade falava lá no 4º período da faculdade não é teoria. É, na verdade, mais relevante para minha prática clínica do que as técnicas cirúrgicas que tive que decorar na cadeira de cirurgia torácica, numa faculdade que prioriza a medicina do especialista focal e hospitalocêntrica do que técnicas de comunicação e o trabalho na APS. Tantos conhecimentos acumulados ao longo desses 6 anos que não me preparam para a linha de frente da vida.

Então, da mesma forma que meus sentimentos e julgamentos se expressam em cada encontro clínico — e precisam ser escutados, credibilizados, para que eu seja livre diante deles (e isso é uma luta) também escutar o outro, ser realista quanto as minhas possibilidades de cuidado, cultivar olhos de ver também é uma luta. No plano espiritual, deve ser uma batalha de gigantes em que o bem tenta vencer. Como só tenho olhos de carne, me sinto inundada, trovoada por entre correntes que me atiram de um lugar ao outro, entre meus sentimentos e o do outro, entre o lugar em que quero estar, o que esperam de mim e o que me colocam. Na prática: me sinto confusa e exausta.

Existe uma pergunta que ressoa dentro de mim e que talvez ajude a dar vazão a essas correntes: a quem serve minha medicina? Que quer dizer assim: o plano de carreira que eu traço, a vida que eu espero beneficia a quem?

Essa pergunta é dura porque revela que a maioria de nós não considerou a realidade do SUS como um projeto pessoal, mas como um trampolim para conseguirmos empregos em que ganharemos melhor e teremos melhores condições de trabalho, ou seja, afastados dos problemas que assombram a maior parte da população. Essa pergunta é assombrosa porque revela que a classe médica é sim elitista, neoliberal e voltada para si mesma, sem se preocupar com a saúde coletiva.

O trabalho em saúde é infiltrado pelos males da sociedade. É cômodo e inútil não se dar conta como o racismo, machismo, neoliberalismo corroem nossa prática médica e causam a desigualdade de assistência em que vivemos. Ser profissional de saúde no Brasil, hoje, é como ver um filme de suspense em que só acontece coisas ruins, vemos os personagens tomando decisões ruins e, no final, há nos créditos: baseado em fatos reais.

Há uma desesperança em mim. Ouso dizer que, em maior ou menor grau, em todos. Minha geração cresceu gritando: saúde e educação para todos é o caminho para mudar as coisas e acreditamos que era possível, afinal vimos nos últimos 30 anos o SUS nascer, se expandir, a atenção primária estendendo-se por todo o território nacional. Vimos filho de gente preta, pobre e periférica entrando na faculdade e se tornando médico. Eu vi nos últimos 6 anos uma quantidade crescente de adolescentes pretos, pobres e periféricos entrar na universidade pública. Ali, já existia fome e muitas dificuldades, mas a pandemia no governo Bolsonaro reabriu e escancarou abismos sociais que estávamos começando a aterrar. Me pergunto quantos dos adolescentes que conheci dando aula em um pré-vestibular gratuito na UFPE hoje estão passando fome.

Escutar a revolta que existe dentro de mim me ajuda a e entender: num governo genocida, promover a vida e se sentir nadando contra correntes e correntes de morte e de ódio é revoltante. Dá a sensação de estar parado no mesmo lugar ou de estar sendo levado com a corrente.

E de onde vem a força pra continuar remando todos os dias? Poucos acreditam (e às vezes eu mesma esqueço), mas existe uma força que não é minha e que me transpassa. Existe uma luz que permanece acesa dentro, por mais que as trevas de fora por vezes tornem os caminhos interiores nebulosos. Existe uma brisa suave que, depois das tempestades, sopra. E nela há encontro: com o que de mais verdadeiro há em mim, no outro, em Deus. Há a alegria da comunhão que supera toda luta, todas as cicatrizes de se expor aos espinhos dessa realidade violenta. Há alguém que cura o que eu não sei como. Em mim, no outro, há sempre Espírito. E é Ele que vivifica, por isso nEle repouso.

Há urgência, portanto, de se viver espiritualmente nesse tempo de feridas sangrantes que por vezes nos imobiliza. Há de se olhar espiritualmente para a realidade e dizer, com fé: todo mundo é um. Enquanto houver o outro, portanto, continuarei oferecendo a minha mão para promover essa unidade.

(lá-ia, lá-ia, lá-ia

lá-ia, lá-ia, lá-ia

lá-ia, lá-ia, lá-ia)

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Giovanna Brito
Giovanna Brito

Written by Giovanna Brito

passeando por aí, partilhando algumas coisas por aqui

No responses yet

Write a response