Autocompaixão
Hoje foi um dia bem típico da Atenção Primária à Saúde. Atendi pessoas complexas, com várias questões de saúde mental e componentes de somatização, agressividade latente e centralização de todas suas dores (físicas, psíquicos, sociais, espirituais) no seu corpo e na pessoa do médico. Na minha utopia de saúde, nada disso seria típico. Na realidade íntima das pessoas (portanto, também na APS) é. No meu Sonho, eu saberia “dar a outra face” a cada paciente que desconfiasse da minha credibilidade quanto médica, que fosse agressivo comigo durante a consulta, que não cumprisse os pactos estabelecidos. Mas não sou. Nem tampouco os pacientes são.
A vida é. Com suas dores, processos interiores, sofrimentos únicos de cada pessoa e também sofrimentos coletivos, ela é. A vida persiste se manifestando em cada pessoa na forma como ela pode se assumir. Por vezes, suprimida por dores antigas, ressentimentos, dificuldade de perdoar. Até o último dia de nossas vidas, ela é. E quer se manifestar plenamente em cada pessoa, mesmo bloqueada pelas nossas desordens.
Hoje, na volta do trabalho, quis correr da multidão de sentimentos negativos que senti no dia de hoje. Raiva, impaciência, insegurança, tristeza. Quis correr pensando que, se deixasse os sentimentos no parque, chegaria em casa mais leve. Corri, mas eles permaneceram. Era a Vida, que queria se manifestar através deles. Que desejava permear tudo que eu sou e sinto, inclusive tudo de negativo que há em mim, para poder se manifestar.
A Vida, teimosa como é, insiste em colocar tudo de cabeça para baixo. Eu lhe perguntava:
“O que devo fazer com essas pessoas que não progridem no processo terapêutico? Que permanecem desintegradas de si de tal modo que projetam em mim sua agressividade, ansiedade e tristezas?”
“Eu te perdôo por tudo o que tu não consegues ainda. Perdôo também elas por tudo o que elas não podem ser também. Também tu, perdoas.”
A Vida me explica: se trata, antes de tudo, de assumir a minha humanidade. Para permitir que os outros assumam sua humanidade, com suas desordens e virtudes, também eu preciso assumir a minha, não fugir dela. Preciso respeitar que para superar alguns vícios e dificuldades, eu preciso viver, errar, assumir, consertar. Assim também o outro.
Em outras palavras: para ser misericordiosa, preciso, antes, assumir minha miséria.