Carta ao Casaldáliga
Pedro, nunca te escrevi. Não tivemos a chance de, em vida, nos conhecermos. Uma dissincronia que só pode ser corrigida pela eternidade, que é onde eu acredito que você está agora. Quando eu nasci, você já tinha 69 anos e morava do outro lado do país, numa cultura e cenário totalmente diferentes dos meus. Quando eu tinha 23 anos, te conheci através de livros e vídeos que fizeram de você, pouco depois de tua Páscoa. É difícil de eu, daqui, com essa minha inteligência limitada, entender o que foi que houve ali, mas quando você entrou no Kairós, a minha sensação é de que você me chamou para perto. Me fez amiga, corrigiu nossa dissincronia terrena.
Sabe, Pedro, às vezes fico revendo fotos e vídeos seus. Magricelo, tom de voz já meio emboloado, rugas de uma vida toda de luta, uma vida toda apostando no Cristo e no Evangelho. Fico me perguntando se quando você via a realidade como era — se quando você era ameaçado de morte por defender as tuas ovelhas, se quando te chamavam de comunista por seguir o evangelho ao extremo, se quando a igreja te amaldiçoava, você se cansava e perdia um pouco a fé na humanidade. Não que tenhamos fé na humanidade, mas me pergunto se você já se esqueceu onde pôr a sua fé. É que tenho me sentido um pouco assim, sabe, amigo? Sem ter onde reclinar minha cabeça. Sinto, como você, que meu ideal é maior que minha vida. Que assumir o Evangelho como regra implica numa vida de renúncia aos privilégios e ao conforto e doação de si (da inteligência, energia, afetos) para mudar as inequidades de onde vivo. Cada vez mais acho que essa luta é minha e maior do que eu mesma. E é de mais alguns outros amigos meus. Claro, assim como o seu, não é um caminho completamente solitário. Até porque sozinho não se faz muita coisa, não é?
Às vezes acho que vejo mais além, não por ser mais especial, mas pelo que vi pelos caminhos que o Espírito foi me levando. Olho para os meninos pretos segurando uma placa de isopor nos sinais da minha cidade (você, como quem viveu olhando para os pobres, daí deve conseguir enxerga-los bem) dizendo que têm fome e revejo cenas de centenas de anos atrás. Revejo a escravidão. Olho para outro homem, mais velho, carregando uma carroça de papelão para sobreviver e vejo escravidão. Às vezes acho que destruímos as senzalas e jogamos o povo preto nas ruas e eles tão lá até hoje, deitado na calçada dos nossos condomínios de luxo. E não me conformo com isso, Nosso Deus não me permite me conformar a isso.
Nessa pandemia, vi certos crimes contra a humanidade que cortaram a pele e ainda hoje sangram. Porque a pele mais fácil de esconder o sangramento é a preta, coagula e fica lá, ninguém nem percebe. Eu te conheci pouco antes de me formar médica. Depois, vi que as inequidades de raça também se refletem na saúde. Vi meu povo preto morrer numa fila de espera de UTI no SUS, enquanto quem tinha dinheiro ia para UTI sem nem mesmo precisar, só pra dar mais lucro para a empresa que gerencia o hospital. Vi alguns colegas médicos negligenciando a vida do paciente do SUS porque, afinal, voltamos ao ponto que ninguém liga pra mais uma vida preta e pobre que se perde. Parece mesmo que no momento de crise a corda do direito à vida rompe do lado mais frágil, sabe? Como se já existisse antes uma força insistindo pra essa corda romper pra o povo preto e pobre. Esse ano eu morri um pouco com cada uma dessas coisas que eu vi. E às vezes não vejo solução, sabe? É tudo tão estruturado historicamente. A medicina segue nas mãos da aristocracia e o povo preto segue morrendo — ou com uma má assistência médica, ou sem assistência ou morrendo de fome. E aí pensei em te escrever. Te perguntar se daí, em Deus, você consegue enxergar um futuro mais luminoso do que eu consigo. Me lembro muito de você ao longo dos dias. Como uma saudade de um amigo íntimo. Sinto que você entenderia dessa dor que te conto agora, que você partilharia sobre como foi ser humilhado por causa de Deus, e por causa dEle, também por defender o teu povo. Sinto que você, 70 anos mais maduro que eu, aterraria meu coração ainda tão inquieto com essa dor que me ultrapassa e me transpassa. Sinto que você entenderia o que quero dizer quando digo que, para permanecer na Igreja, preciso também diariamente perdoar a Igreja por tudo o que ela ainda não pode ser. E perdoar meus irmãos por tudo que eles ofendem, as vidas que eles tiram sem saber que estão tirando. No fundo, eu também sou culpada por essa estrutura genocida. O mal que reina em grande escala na sociedade é o mesmo mal que reina em mim em alguns momentos. Sou uma mulher profundamente dividida, contraditória, cheia de ausências.
Deus me deu muitos bons irmãos ainda em terra, sabe? Gente cheia de amorosidade, verdadeiramente comprometidos com o evangelho. Você conhece alguns deles. Me sinto muito bem acompanhada, mas algumas dessas dores, meu caro amigo, são um tanto sozinhas. Queria que você pedisse ao Cristo, agora que estás plenamente nEle, que permaneça comigo. Assim como você, tenho plena consciência de que travo uma luta em que a derrota é garantida. E só encontro forças para lutar no Cristo que foi completamente derrotado para nos dar vida, vida em abundância. Só encontro força porque sei que a Vida que Ele me deu e que eu transmito é maior do que qualquer dor, trauma, inequidade histórica. Acredito que a Vida que Ele me dá sempre vence. Os dias também me dão essa certeza. Um dia azul, o olhar compassivo da minha preceptora, ver os bracinhos inquietos de uma criança cujo coração eu escutei bater na barriga da mãe: a vida sempre vence. Lembro de você quando lembro que em Cristo não há derrota. E que a morte é sempre Páscoa.
Hoje estava pensando que gostaria mesmo de ficar velhinha e ainda acreditar na vida, como você. Intercede por mim, Pedro. Pra que eu seja uma mulher de fibra como você foi um homem de fibra. E uma mulher de fé como você foi um homem de fé.