Carta ao Casaldáliga

Giovanna Brito
3 min readSep 30, 2022

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Pedro, há tempos que não te escrevo. Sempre lembro de ti com uma memória esperançosa. Lembrar da tua vida, teu jeito — tua teimosia, sensibilidade, intuição, poesia, firmeza — me consola e me conduz. Me ajuda a viver melhor minha vida.

Vim passar um mês no Parque Indígena do Xingu. Estou trabalhando com os Kaiabi e os Juruna. A terra onde eu estou é no município em que você viveu quando estava no Brasil, São Félix do Araguaia. Por isso, lembro de você todos os dias. A ideia de vir para cá e viver um pouco do que você viveu ao entrar em contato com os indígenas (no teu território, Tapirapé), me animava. Peguei esse ânimo e um avião, ônibus, carro e barco e vim parar aqui.

To há quase um mês longe de casa, longe de tudo e de todos que tenho como referencial. Considerando a monotonia do dia a dia lá em Recife — trabalho, estudo, amigos, família — vir para cá é a maior aventura que já vivi nesses 25 anos de pouca vida. E, de fato, tem sido uma experiência exterior e interior me desprender de tudo que já conheço.

Quando te escrevi, ano passado, vivia um momento muito delicado emocionalmente. Estou me tornando adulta, descobrindo quem sou, aprendendo a viver a vida (ou, como você diz, a morrer a vida). Me vi de frente com dores que pareciam profundas demais para transpassar. Fiz guerra contra mim, depois contra Deus, depois contra a Igreja, depois contra meus pais. Aos poucos, fui cansando de me defender. Tô aprendendo, como você aprendeu a vida toda, a focar no que me é possível e parar de me distrair com o impossível, a relativizar o que é relativo e absolutizar o que é absoluto. A observar as coisas no intuito de compreendê-las, sem ter a pretensão de querer mudá-las em função de mim. Estar aqui deixa muito claro que nada, absolutamente nada, depende de mim. Nada está em função de mim.

É claro que, com isso, não quero dizer que me omito das minhas lutas. Daqui, às margens do rio Xingu, de longe, me fica claro qual meu lugar, o que eu quero da vida e as lutas que preciso assumir: nosso compromisso com o Reino, assumidos quase por fatalismo ou vocação, segue guiando minhas escolhas de vida. Não consigo ter paz enquanto for negada a qualquer pessoa, por qualquer razão que for, a dignidade de ter comida, casa, família, água, saúde, alma. Como nada, absolutamente nada, depende de mim pra funcionar, o melhor que posso fazer com a minha vida é ser uma gota de Reino para que as pessoas vivam melhor. Como você diz, Deus cuidará da vida eterna. Cabe, a nós, cuidar da vida aqui. Tudo Isso fica claro porque as distâncias me tornam um tanto inatingível. Queria guardar essa clareza para levar para a linha de frente do dia a dia. Ferida, por vezes, me sinto sem ter para dar.

Cheguei aqui ainda um tanto ferida e com medo de me aproximar de Deus. Aqui, porém, não há nada entre eu e Ele. Imagino que tenhas sentido o mesmo. Ele é o Absoluto. Amá-lo e amar o próximo é o absoluto, todo o resto — daqui e de tudo que ficou do lado de lá da mata, é relativo. Reconhecer minhas trevas e assumi-las é o caminho absoluto da minha história. É onde tenho a possibilidade de agir.

Aqui, correndo o mundo através do Rio Xingu, a gente vê o reflexo do céu nas águas do rio. Se sai um pouco das margens e parece que estamos navegando no céu. Tenho a intuição que era isso que te sustentava. De novo, meu irmão, te peço sustento pra quando faltar. Sei que tu tens me sustentado por aqui quando os dias são difíceis. Te peço também a ousadia que tinhas. Que eu ouse assumir o estilo de vida de Filha de Deus. Intercede pra que nada nem ninguém me tire essa dignidade, essa filiação que me salva, antes de tudo, de mim.

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