Com gosto

Giovanna Brito
2 min readJul 26, 2022

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“Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca. Apocalipse 3:15,16

Uma vez por mês, ao menos, me questiono o porquê de eu fazer o que eu faço: o que eu quero da medicina? o que a medicina quer de mim?

Descobri, com essa pergunta, que não tenho interesse de ser protagonista da vida de ninguém, a não ser da minha. A partir disso, entendi também que a medicina não pode roubar minha vida de mim. Sou uma mulher que tem projetos, sonhos, relações que não cabem na medicina. Graças a Deus.

Outro ponto que entendi é que não quero estar no papel de quem toma as decisões pelo outro. Quero tomar as decisões com o outro. Isso significa que o hospital e toda sua cultura paternalista se tornaram plano B de carreira. Significa também que estou disposta a aprender todos os guidelines, protocolos, capítulos de livros e artigos, colocá-los no meu bolso (ou na minha maleta de médica) e tirá-los quando eles fizerem sentido a quem está na minha frente.

É um trabalho duro, muito duro. Não pela dificuldade de decorar guidelines — visto que eles estão a alguns clicks — , mas porque descer do pedestal de quem sabe o que é melhor para o outro me deixa altamente vulnerável para ver o outro como ele verdadeiramente é, como a vida verdadeiramente é, como eu verdadeiramente sou.

Gosto sempre de voltar àquela frase de Frei Betto: “Era irresponsavelmente feliz, liberto dessa onipotência que recobre de fúria a excessiva fragilidade”. E perceber que é um processo de libertação paulatina.

O que quero da medicina é essa visão privilegiada de quem vê de camarote o espetáculo da vida com suas muitas dores, frustrações, surpresas, mistérios, alegrias e temporadas. O que a medicina quer de mim é que eu seja íntegra o suficiente para me responsabilizar pelas minhas ações como profissional e como pessoa.

Canto o mesmo canto desde que me entendo por gente. Essa melodia calma, agridoce. Esse meditar de que a vida é dura, muito dura, mas isso não é grave. Esse canto tem sido minha luz e salvação, o que me faz olhar para a realidade muito dura que me circunda e fazer da dor riso, poesia, companhia. Sinto, porém que é um canto amadurecido, justamente porque em libertação da onipotência. Não nego o que dói, onde arde, mas posso cuidar das feridas — as minhas e as do outro — uma a uma, sem pressa e com sobriedade.

“Então que sejas com gosto

É assim.”

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