Da criança envelhecida
Hoje a morte bateu na porta do consultório, mas estava diferente. Não era a morte morrida que veio ontem nos ver. Nem a ameaça de morte, que tem nos visitado tão frequentemente nesse tempo de pandemia. Nem mesmo o medo de morrer, esse que já é nosso íntimo depois de tantos encontros.
Ela estava diferente. Discreta, velada, mas gritando nos olhos encovados de uma criança.
Hoje a morte bateu na porta do consultório. Era a fome.
Sebastião era uma criança de 4 meses que nasceu no meio da pandemia. Fomos buscá-lo em sua casa para ser avaliado, pois sabíamos das dificuldades pelas quais a família estava passando. Filho de Cecília, uma mulher negra de uns 20 e poucos anos, mãe solteira de mais outras duas crianças. Sebastião nasceu de parto normal, doloroso, sem privacidade nem enxoval de linho, num desses hospitais de recife. Nasceu de luto pela não existência do pai (é que um recém-nascido não sabe diferenciar entre não estar presente e não existir).
Nos primeiros dias, ficou internado para receber cuidados médicos devido a icterícia neonatal. Foi sua segunda luta, mas logo recebeu alta.
Nessa parte de sua história, há um grande silêncio. Não pela ausência de acontecimentos, mas porque o que acontece aqui fica na intimidade de Cecília e Sebastião: o processo de se reconhecer mãe e filho, de assumir a responsabilidade por alguém que depende de si para sobreviver, de buscar recurso (financeiro, emocional, físico) para prover a vida de alguém quando nem mesmo se tem de onde tirar para si. Há um grande silêncio que contém lágrimas, culpas, angústias, medos e abandonos que só Cecília pode expressar e não consegue.
Existe uma máxima dos santos, psicólogos, poetas e profetas: a gente só pode dar o que a gente tem. Se tenho a paz, te dou a paz. Se tenho falta, te dou minha falta. Se tenho preocupação, te dou preocupação. Se tenho fome e não tenho de onde tirar comida, então…
O fato é que Cecília não tinha sustento — social para dar conta de acolher uma vida nova; psicológico para lidar com a avalanche de emoções e demandas que é ter nas mãos alguém que é completamente dependente de você; financeiro para prover o alimento necessário; A mãe, por isso, precisou encontrar uma solução: estava diluindo o leite em uma maior quantidade de água “para durar mais” e não faltar comida.
4 meses depois desse grande silêncio, encontramos Sebastião com rosto e pele de gente velha, como se as lutas vividas tivessem lhe sugado a vida. Ou pior: impedido a vida de crescer dentro dele. Ele, que nasceu sofrendo a morte de seu pai, viveu morrendo de fome. Quando o vimos, nos entreolhamos, assustadas: Sebastião tem desnutrição grave. Ou melhor, tirando os termos médicos para não eufemizar essa realidade, Sebastião sofre de fome. Por causa da fome, precisamos interná-lo numa enfermaria para garantir que ele ganhe peso, trate infecções, seja vacinado. Precisamos de um suporte de saúde intensivo para suprir faltas que na verdade são sociais.
É que Sebastião nasceu numa época em que muitos negam sua realidade, quando o presidente diz: “passar fome no Brasil é uma grande mentira, você não vê gente mesmo pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo” e alguns acreditam. E talvez eu mesma tenha escolhido ignorar essa realidade dos 125 milhões de brasileiros que sofrem de insegurança alimentar até hoje. Afinal, é mais fácil ignorar 125 milhões do que uma criança chorando por comida no consultório.
Mas criança chora, grita, esperneia. Não dá para ignorar seu pedido de ajuda, nem tampouco ir para minha casa confortável, onde tenho acesso a verdadeiros banquetes, e ter paz. Como cristã, não posso. Como pessoa, não posso. É que escolhi viver vivendo. Se fecho os olhos para alguém que não tem o que comer, quando nego esse sofrimento, a morte vence. E eu morro com Sebastião. Vivo morta.
Essa história não tem consolos. Ela escancara a realidade que não queremos ver: alguns porque não suportam tanto sofrimento, outros porque não se importam, outros porque estão mais interessados em encontrar culpados do que em enxergar.
Nós, porém, damos testemunha do que vimos:
Estamos voltando a morrer de fome.
E pra esse tipo de morte não há poesia que a embeleze.