Da história que não pôde ser contada
Não sou muito boa com abstrações, nem mesmo em sonho. Tenho estado no concreto, no chão, sentindo a dureza das coisas sem, entretanto, sentir algo além da gravidade sobre mim. Como médica, o máximo que consigo, na concretude das coisas, é transformar as histórias que escuto em poesia fisiopatológica, se bem posso chamar assim.
Tenho escutado histórias que aconteceram e não puderam ser contadas. Ficaram guardadas, como um poema preso, no coração de quem as viveu — e se espalhou para os pulmões, às vezes deixando a pessoa sem ar. A de algumas se espalhou para os ovários, deixando a mulher infértil, incapaz de gerar vida dentro de si. A de algumas foi para o fígado, deixando a barriga dolorida e o corpo com dificuldade de metabolizar as coisas ruins que entraram. A maioria dos protagonistas dessas histórias sente medo ter um câncer. E se o medo crescer demais e me paralisar? E se a dor aumentar demais e eu não conseguir viver? E se meu desejo de morte virar um câncer de ovário?
Pois bem. Todas essas histórias, felizes ou tristes, trágicas ou de sucesso, aconteceram. Mesmo que tentássemos esconder, aconteceram. Mesmo que fingíssemos que não as sentimos na pele enquanto nos penetravam e tomavam as vísceras, aconteceram.
Alguns de nós olhou para o que nos aconteceu e compreendeu “bem, isto é o que eu sou hoje”. Parece que são esses que conseguiram absorver o que a vida lhes deu, sem prender dentro de si. Agora são mais maduros, alguns mais rígidos, outros mais sensíveis, outros mais risonhos, outros mais tristes. É assim. A gente lida como pode.
Eu, porém, tenho começado, aos poucos, a entender quem eu sou hoje. Que matéria é esta que me constitui. Sou mais dura do que um dia já fui. Sou menos rígida do que um dia já fui. Os dois ao mesmo tempo: dureza e flexibilidade. Compreendo a duras penas que preciso impor limites. O custo é a capacidade de digerir, metabolizar e absorver a própria vida. Não dá pra fazer a digestão de cabeça para baixo.
Algumas coisas, aprendi garimpando meus tesouros, são inegociáveis: não desejo viver a vida sem esperança; não posso me desligar da fonte que me dá a própria vida, mesmo com todas as contradições que isso abarca; espírito e corpo são inseparáveis. Tudo que me rouba essas coisas deixa um descompasso em mim. Me desarranjo toda.
Por isso, mais do que afirmar, decido: as coisas são como são, a vida tem suas mortes e o caminho que me permite mais vida é este que me dá a estrutura para sustentar de pé as ondas que me atingem.
“Amplia o lugar da tua tenda, e estendam-se as cortinas das tuas habitações; não te detenhas; alonga as tuas cordas, e fixa bem as tuas estacas.” Is 54,2