Da mulher torta

Giovanna Brito
4 min readMay 28, 2021

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“Você vai aprender a oferecer suas mãos para ajudar sem precisar colocar seu coração sangrando na mesa de cada consulta” Lara

“somente rejeita
bem conhecida receita
quem, não sem dores,
aceita que tudo deve mudar” francisco el hombre

Hoje conheci uma mulher firme e desdobrável, mas cuja dor lhe convencera não ser capaz de sustentar os próprios passos. Explico: no seu primeiro ano de vida, teve poliomielite e ficou sem conseguir andar. Desconhecendo sua força, mas com um desejo infindável de vida, venceu as impossibilidades e recuperou a movimentação de uma de suas pernas. A outra, porém, não correspondeu a seu desejo e permaneceu morta. Assim, cresceu, virou mulher, esposa, trabalhadora, mas carregava em si um membro morto.

Torta, lhe chamavam, porque diziam que andava torta e desejava ter um futuro torto. Queria casar, mas não queria ter filhos. Achava não ter em si vida suficiente porque pra onde ia carregava a sua parte morta. Com o tempo, cresceu a desesperança de ter em si a vida plena que desejava. Aceitou assim seu membro morto — como se lhe coubesse apenas viver sempre um pouco morta.

Quando a conheci, estava gritando por ajuda, mas mal conseguindo balbuciar seu pedido. Me disse: “sempre fui triste assim, um tanto sem vida, mas quando as dores aumentaram, ficava mesmo difícil querer viver com um membro morto e com os outros que doem, como se sentissem a falta da perna que perdi”. Então, por entre soluços e lágrimas, cabisbaixa, me confessou: “mas agora está tudo pior, doutora, eu não era assim. Ano passado engravidei, mesmo sem querer ser mãe, cortaram meu benefício do INSS e meu marido me deixou. Tive que voltar ao trabalho e aguentar os olhares tortos, que me perguntavam: como é que essa mulher torta vai ser mãe? Eu não sabia, não aguentava de dor, daquela humilhação”.

Então pediu para se afastar do trabalho e, outra vez, foi humilhada por um médico do INSS que julgou que ela tinha apenas uma fraqueza, ignorando seu membro morto, as dores ainda mais intensas e a menina que crescia em seu ventre e lhe parecia sugar a vida que lhe era pouca. Quando a menina nasceu, tinha a sensação de ter perdido a vida toda que havia em si.

Perguntava-se se o médico não estava certo, se ela não tinha mesmo uma fraqueza. Não tinha forças para sair da cama, ir trabalhar, amamentar sua filha, ser a mãe que ela precisava. Depois da separação, o marido pediu que ela saísse da sua casa. A mulher torta e sua filha foram morar de favor na casa da sua irmã. Por dentro, via os caminhos de sua vida se fechando. Os dias passavam e ela se perguntava se haveria uma saída. Cega de sua própria força, exausta de todos os “nãos” que recebera em toda tentativa de se ajustar, dizia-me: “não vejo saída, não vejo mais caminho”. Respondia: “eu e minha equipe queremos te ajudar a ver caminho”. Seus olhos cresciam em desespero e, enfim, gritou: “Vocês não entendem! Eu não tenho dinheiro nem para comprar comida!”. Sem dinheiro, sem emprego, sem esposo, sem casa, sem o direito de escolher não ser mais mãe, se revoltava contra a filha e contra si. Pensou até mesmo em fazer coisas ruins e, só de pensar, se inundava em lágrimas, sua única forma de grito.

Tendo seu grito escutado, lhe ofereci minhas mãos e as de outros que saberão lhe ajudar melhor que eu. Tentaremos conseguir que ela receba algum salário por afastamento por doença, lhe demos um lugar de escuta semanal e começamos medicações para lhe tirar as dores e os pensamentos infernais. O que temos, lhe damos, mas além de minhas mãos, há certas coisas que só serão possíveis se lhe derem o direito de ter. E, sobre isso, também eu estou desesperançosa.

Desespero, sabendo que minhas mãos são pouco consolo se não for garantido o direito básico do alimento, da medicação, do acesso ao serviço de saúde. Desespero, palpando na rotina que até a busca por saúde é uma luta desigual. Para quem tem renda, saúde pode até ser sentir-se bem consigo mesmo no meio da turbilhão de informações, sentimentos e preocupações gerados pela pandemia. Para a mulher torta, antes, saúde passa pela garantia de que terá renda para dar leite a sua filha, a qual o governo lhe privou no corte absurdo que tem feito na previdência. Para a mulher torta, passa por garantir que ela vai ter acesso a boas medicações que lhe ajudem a controlar a dor — o que já é um acesso limitado. Passa por garantir que ela terá acompanhamento psicoterápico, médico — isso, ainda que com muitas limitações — podemos oferecer.

Assim como a mulher torta, também eu (que teoricamente deveria saber curar) estou tendo dificuldade de curar a desesperança. Olho os caminhos e sinto uma vertigem, como se estivéssemos viajando num ônibus que só anda de ré. Eu, que deveria saber consolar, olho a realidade e também me sinto inconsolável. Também eu vejo a vida que parece estar sendo tirada de nós e sinto raiva e cansaço. Posso assim tocar, com todos os meus privilégios que me sustentam, o coração da mulher que sangra, sem a hipocrisia de achar que meus sofrimentos se equivalem aos seus.

São tempos difíceis. Desigualmente difíceis.

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