Das vidas extraordinárias

Giovanna Brito
6 min readOct 20, 2020

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Para que as lágrimas não passem despercebidas, para que o amor não seja só canção de quem está apaixonado, para que a realidade seja vista com os olhos de dentro, para que os meus “para que” percam sentido, conto essa história que fala das dores e alegrias mais nobres de existir.

N. era um paciente de 3 meses de vida que, desde o nascimento, permaneceu internado nos hospitais por ter múltiplas malformações (no cérebro, boca, esôfago, coração, trato urinário) e precisar de assistência médica devido às complicações decorrentes dessas. N. periodicamente passava seus dias na UTI, sendo submetido a inúmeros procedimentos invasivos para conseguir fazer medicação na veia, fazendo uso de antibióticos que matavam todo tipo de bicho que existe no mundo, apresentando intercorrências que verdadeiramente desafiavam a criatividade dos médicos para decifrá-las. Como N. não era um menino igual aos outros, era mesmo difícil ler seus sinais quando ele queria nos dizer que não estava bem. Era mais difícil ainda decifrar onde poderia estar o foco que estava gerando suas intercorrências.

Nos últimos meses pude acompanhar N. numa enfermaria de pediatria. Durante esse tempo, vê-lo era o momento mais importante e desafiador dos meus dias porque exigia que eu refinasse o olhar para notar qualquer ruído diferente em seu pulmão, qualquer coloração diferente na sua urina ou nas suas fezes, qualquer dificuldade de se alimentar. Eu, acompanhada de um batalhão de especialistas, nos esforçávamos para que ele ficasse estável e começasse a ganhar peso, a fim de tentar realizar algum procedimento cirúrgico que lhe ajudasse (e também a sua mãe) a viver com o mínimo de sofrimento. Era importante que eu estivesse atenta e soubesse exatamente onde pisar, caminhando na corda bamba entre não tirar da mãe a esperança de dias melhores e também não criar expectativa de uma melhora milagrosa. Com N., vivíamos uma luta por uma homeostase dificílima de alcançar: do funcionamento do seu corpo, da expectativa da equipe e da família.

Curiosamente, aprendi mais sobre aquele pequeno com sua mãe, R., do que com definições de livro ou mesmo com outros profissionais mais experientes. Ela, com o olhar de águia que só as mães possuem, estava atenta às mínimas alterações daquele corpo tão diferente. E, com o tempo, aprendeu a ler os seus sinais e já sabia o que eles significavam, a ponto mesmo dos médicos só lhe ajudarem a confirmar aquilo que ela estava pensando — aprendeu sobre semiologia sem nunca passar por uma universidade, sem nunca ler nenhum livro de medicina.

Depois de 2 meses os acompanhando, sofria com todas as vezes que ele precisava ir para a UTI e me admirava com o amor de sua mãe que, quando ele ia para a UTI e ela ia para casa, sofria mais porque estava distante dele. Já não se importava de estar há meses no hospital com ele desde que estivesse sempre junto. Abriu mão de casa, marido, rotina, da sua comida, do sonho de amamentar seu filho, do sonho de um filho saudável que lhe acompanhasse e já era mulher de um único objetivo: acompanhar seu filho, o amando como podia. Estando com ele, conversando e lhe alimentando pela sonda, cuidando dele como se fosse o primeiro dia de sua vida (ou o último?). Muitas vezes, quando eu ia vê-lo, o encontrava pronto para um passeio dos grandes — com o cabelo penteado para o lado, nenhum fio fora do lugar, de camiseta, macacão e tênis. Muitas vezes, outros colegas perguntavam a sua mãe: “para que tudo isso, se ele vai ficar no hospital?”. Bem, sua mãe sabia que ele ia ficar no hospital. Sabia mesmo que talvez nem conhecesse o mundo fora do hospital. Mas o amor não tem para quê, só ama. Ela tinha necessidade de amar o filho como podia — em suas possibilidades, vesti-lo como um homenzinho, mesmo que logo após precisássemos tirar todas aquelas roupas para examiná-lo. Para ela, bastava poder estar com ele e poder cuidar.

(Coisas que a gente pode se perguntar: para que tudo isso, se ele não era como ela sonhou que ele seria? Para que tudo isso, se ele não se desenvolveria como as outras crianças? Para que tudo isso, se não tinha cura? Não existe para quê: quem ama não sabe calcular e, sem muita conta, ela dizia que cuidaria dele até o fim)

R., sua mãe, me lembrava muito de outra mulher extraordinária que conheci nos livros: Chiara Corbella. Eram histórias parecidas em contextos diferentes. R. vinha do interior de Pernambuco, tinha pouco recurso e pouco querer sobre a assistência que era dada ao seu filho. Pobre é ensinado que saúde é favor e, quando reivindica que é direito, ou é ignorado ou é taxado como “difícil de lidar”- coisas que no Brasil estão de cabeça para baixo, ninguém viu ou, se viu, não se incomodou. Chiara não precisou lidar com isso e talvez a assistência perfeita que lhe foi dada lhe possibilitou transfigurar com mais facilidade a situação em que vivia, o sofrimento que vivia. O que elas tem em comum, porém, é mais raro e mais bonito: o desejo de amar os filhos como puderem e enquanto puderem, custe o que custar. Esse perder de si para dar vida ao outro, heroísmos que parecem fáceis para quem é mãe. Coisa rara que só entende quem ama e quem nunca se sentiu amado dessa forma ou nunca amou dessa forma diz que é loucura.

Eu senti a necessidade, então, de promover esse encontro entre Chiara e R.. Quando deixei de lhe acompanhar, a equipe médica estava começando a ficar sem possibilidades de tratar as infecções que N. apresentava — já não havia mais veia possível de ser puncionada e os antibióticos pareciam não fazer mais efeito. A progressão do quadro leva para um fim que não gostamos de falar sobre, mas que acontece — para quem tem 3 meses, 20 anos ou 90, acontece. Senti a necessidade de lhe dar o “nascemos e jamais morreremos”, livro que fala sobre a vida de Chiara Corbella, na esperança de que Chiara lhe ajudasse a enxergar sentido.

Hoje, já trabalhando em outro setor do mesmo hospital, encontrei R. no corredor. Enquanto ela falava, fui percebendo do que se tratava — ela estava se despedindo, em nome de N., de mim. Me agradeceu por todo o cuidado que eu dei a seu filho. Me disse que sabia que ele gostava de mim porque eu tinha carinho por eles (e eles estavam certos! como eu disse, a sensibilidade fina das mães), que tinha lido o livro em poucos dias e que agora tinha dado para o seu esposo ler. Me falou com grande sofrimento das vezes que foi subestimada por outros médicos ao menosprezar suas queixas porque seu filho era diferente, da vez que quase viu o filho morrer diante de si porque demoraram demais para agir — que expressa o quanto aquela vida lhe é preciosa. Ainda assim, sabendo que seu filho é seu grande tesouro, ela me olhou e disse, com sinceridade, que espera o tempo de Deus, o tempo de N. — porque se fosse pela vontade dela, ficaria com seu filho para sempre — mas, como não está no controle e não quer que seu filho viva para sofrer, acolhe o sofrimento de perdê-lo e entregá-lo ao Pai.

“Daqui a 1 mês eu vou me tornar médica” — eu disse a ela, quando ela me perguntou sobre como vai ser a minha vida. E digo a mim mesma hoje. Não sei quais chaves viram dentro da gente quando somos responsáveis pela saúde das pessoas e estou aprendendo mesmo a respeitar quem vê a medicina diferente de mim. Enquanto olho para essa história, para essas vidas que acompanhei, fico encantada pela profissão pela possibilidade de poder, todos os dias, sair de mim e cuidar dos outros. E poder enxergar: a vida é mesmo bela, apesar de todo sofrimento. Todo dia vale a pena viver e toda história é uma história de amor que precisa ser contada. Essa é a história de amor entre N. e R., eu sou uma mera telespectadora e aluna dessa mãe que se descobriu, por amor, mais forte e mais sábia do que pensava ser.

Se um dia o desânimo bater e eu virar uma mera preenchedora de papéis, que eu me lembre do que eu aprendi com esses dois e honre tudo o que eles me ensinaram. Se um dia os olhos verem só o material, o exame físico, os dados do laboratório, que eu feche os olhos e me lembre que as coisas não são como são, mas “só o Sonho vê com o olhar”, como diz aquela frase de Fernando Pessoa que me salvou no 4º período da faculdade. Se um dia eu for só mais uma movida por “para que”, que eu me lembre que gratuitamente eu fui amada até o extremo por um Homem que me ensinou tudo. Que eu me lembre que o extraordinário se dá no ordinário e encontre esses feixes de luz na rotina para dar nova cor à realidade branca ofuscante dos hospitais.

Daqui a 1 mês eu vou me tornar médica e hoje alugo uma oração de um amigo meu: que eu não perca o canto, mesmo quando não houver esse encanto.

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