Desdobrável
“Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.”
Adélia Prado
Coleto partes de mim mesma como pedras preciosas que encontro no caminho, nas ruas de minha cidade, nos altos cumes e em desfiladeiros estreitos. Sob céus azuis e acinzentados, nos dias de maior indisposição e nos de ânimo. Nos de viver de alma e nos de máquina. Trabalho como uma garimpeira, coletando as pedras mais bonitas, testando sua qualidade e beleza sob várias luzes, agregando ao meu mosaico pedaços de alguns lugares, pessoas e histórias. Sou incompleta. Aceito essa condição de ser. Vou sendo, sob demanda, como posso, dando passos sem saber se haverá chão que os sustente.
Nos últimos anos me descobri centrada e desdobrável. Como uma viga maleável, porém presa ao seu centro. Vou me envergando para chegar a posições que não alcançaria reta. Me deixo livre para assumir formas sempre novas e desafiadoras, porém sempre retorno ao centro de mim mesma. Descobri esse segredo da vida: para ser maleável, é preciso ser centrada. Se não, ao se desdobrar, ou se quebra ou se perde no lugar do outro. Encontrei o centro de mim mesma e vou descobrindo o que me faz voltar a ele, é o meu sagrado e o meu segredo. Não tenho medo de ir, me envergar mais do que acho que consigo, se me mantenho no centro de mim.
Essa condição em que, para ser livre, preciso estar presa ao centro de mim mesma é protótipo de algumas outras realidades que vivo. Eu sou uma pessoa só, mas por mim mesma não consigo fazer muita coisa. Quando me vi uma só, entendi a necessidade de ser mais, de ser dois, três, cinco ou muitos. Quando me vi dois, três, cinco ou muitos, soube da necessidade de ser um. Quando saí do centro de mim para tentar enxergar a realidade com os olhos do outro, sofri como quem ama o outro como a si mesmo. Como estou presa em mim mesma, aceitei também essa condição de ser para não viver anestesiada.
Viver é movimentar-se entre opostos: eu e o outro, luz e escuridão, material e espiritual, noite e dia, individual e coletivo. Feliz eu sou quando faço, desse movimento, dança e, da rotina, melodia.
Quando escutei essa melodia e percebi que essa vida é uma passagem, como uma estrada que se percorre sem saber o tamanho nem a direção do percurso, me livrei da pretensão de chegar primeiro. Pra onde eu vou, por essa estrada sem chão, é melhor andar a pé, sentindo a brisa do caminho, o ritmo da respiração, a mudança das estações. Cultivo sonhos nos finais de semana para colorir uma realidade que a indiferença tornou opaca. E peço a Deus que não me deixe me acostumar aos ruídos e ao que é morno e insosso.