“Doutora, pode passar uma vitamina pra minha filha?”
“Que tanta luz se perde ao fundo desse mar
Amar assim será nosso triunfo”
Versos que compomos na estrada
Hoje conheci Camile, uma adolescente de 15 anos que veio ao consultório porque sua mãe estava muito preocupada com sua perda de peso. Percebia que Camile estava há alguns meses sem vontade de comer bem, temia que ela tivesse alguma deficiência de vitamina, alguma anemia. Mais uma consulta típica da atenção primária à saúde. Com o olhar puramente biomédico e com objetivo de promover saúde, examinaria Camile e, caso estivesse tudo dentro da normalidade, tranquilizaria a mãe quanto a não necessidade de exames nem de repor vitaminas. E o fiz, afinal esse olhar faz parte do meu trabalho, mas tenho aprendido a enxergar além.
A sós com Camile, pergunto se teria algo que ela gostaria de compartilhar comigo, algo em que eu poderia lhe ajudar e que ela não se sente à vontade de falar na frente da mãe. Camile respira fundo, olha para o teto como quem tenta puxar lá de cima a coragem de falar sobre o que realmente importa. Depois, olha para mim e com lágrimas nos olhos, tenta disfarçar: “não, está tudo bem”.
Eu também, olho nos seus olhos e jogo com o óbvio: “você tá cheia de lágrimas nos olhos, como quem sabe o que precisa falar, mas não tem certeza se pode”
Retira o véu e me conta: “É que, desde que meu pai morreu por sequela de covid, eu não sinto mais fome”
Me conta, para que eu consiga entender melhor sua realidade, que seu pai passou 7 meses internado por covid, mas não se recuperou após as sequelas. Eram muito próximos. Na época que foi internado, ele é sua mãe planejavam a festa de 15 anos de Camile. Lembra dele quando está em casa, quando sai para um restaurante, quando anda pelas ruas, quando vê seus irmãos… em todos os lugares, ele está, como uma memória que se vivifica para suprir a ausência física.
Pergunto:
“Como você se sente quando lembra do seu pai?”
“Não sei dizer… sinto um vazio”
É, Camile, talvez quem sinta um vazio o tempo todo não vê sentido em comer. Afinal, que falta é preciso preencher? Que fome é essa que não consegue ser saciada? Há certos vazios que são, de fato, insaciáveis. E crescer é aprender a conviver com eles. Digo isso em segredo, olhando também para os meus vazios, que são muitos e infindáveis.
Há, porém, como Camile me contou, uma amorosidade que amacia os vazios, como ela sentiu ao escutar, suavemente, a voz do seu pai a dizer que lhe amava. É esse amor que transforma a lembrança dolorosa em saudade. Que faz com que o gosto amargo da perda se torne um pouco mais palatável. Que permite o existir voltar a fazer sentido, na consciência de que seu pai foi eternizado nela.
Me coloco, pois, ao lado de Camile para tentar atravessar essa jornada solitária que é o luto. Compartilho que sei como é essa sensação de sentir que tudo está diferente, enquanto tudo segue igual – porque o seu universo particular mudou completamente de configuração.
Eu sei, esse trabalho de cuidar de feridas invisíveis é muito pouco reconhecido. Ninguém, ao final do dia, me elogia pelo belo procedimento que fiz, pelo debridamento ou pela exérese de tumor que realizei. Não tenho sala de cirurgia montada para mim, nem equipe técnica para me ajudar na operação, não mando os tecidos doentes que retirei para biópsia. Porém, em momentos como esse, me sinto debridando tecidos mortos, retirando o tecido doente, suturando feridas grandes e profundas demais para se fecharem sem ajuda.
É, eu sei, ninguém vai poder me confirmar pelo resultado da biópsia. Não verei na tomografia a fibrose pela cicatrização. É que não tem ainda tomografia que veja a alma, biópsia que confirme o que está na psiqué. Ainda assim, sou médica de gente – de quem tem corpo, alma, mente, relações, famílias – e não ajudar as pessoas nos seus processos de cura além do físico é também negligência, se há um pedido de ajuda.
Agradeci, pois, a Camile, por me deixar tocar nas suas feridas invisíveis, as quais ela tem escondido de quase todo mundo.
É, Camile, eu sei, quase ninguém vê.