Mulher de abismos
“Aspiro um sucinto “bem-querer” e, desse modo (…) bem (…) hoje deixo-te um vão. Não preciso que estejas tão preocupada com as minhas mãos. (…)”
“projetar-se, menina, é viver e ter de se acostumar com a idade e o final do filme, que após terminado, seja lá como for, terá de permanecer assim. Sua capacidade de rigidez é tão intensa que nos fará entender, doce, a seriedade que uma historia tem, quando finalmente aberto, o livro, é. Boas intenções, quando fechadas, têm a liberdade de conter o que bem entender. Agora, pois, se abertas, têm de se alterar para atender os que as lêem.”
Palavras que ecoam nos abismos criados. Há anos, habitava neles, silentes e em paz. Hoje, porém, quando escuto esse eco, de primeira, me assusto e então me inquieto: com que seriedade escrevo os capítulos de minha vida? Surpreendida, me vi repetindo ciclos de idealizações e histórias contadas, mas nunca vividas. Sonhos que deram voltas e voltas e voltas dentro de mim, sem me levar a lugar nenhum.
Devo ser uma mulher de abismos, concluo. Só assim para caber tanta ilusão dentro de mim.
Estou construindo uma casa. É um trabalho prático e pedagógico: ou cabe ou não cabe, ou arruma um espaço ou joga fora, ou fica bonito ou não fica.
Concretude para mim, filha de água, é sempre um choque. Minha fluidez interior, que se dilata e se afunila para andar por qualquer lugar, começa a entender: o caminho é também delimitado pelas margens e pelas rochas em que choco e me desfaço para depois me reencontrar.
Bem.
“Liberta a ti mesma, antes, e não vivas tu – menina que lê e interpreta, mas tu – crescida que sente e, então, argumenta.”
Argumento: tenho pensado sobre a diferença entre ilusão e inocência. Ilusão é o que se tem antes do livro ser aberto, escrito, lido, proclamado, escutado, como boas intenções. Inocência é o que se perde ao se ousar viver uma história antes de escrevê-la. Bem, tenho vivido e perdido a inocência, porém algo dentro de mim insiste em se prender a ilusão.
Então, decidi romper com ela antes que ela me quebre, essa moça cheirosa e sagaz, mas que me lança a queda livre – essa tal de ilusão.
Quanto a inocência, essa outra moça, um tanto mais discreta e sorridente, sofro sempre que vejo ela indo. Ela vai e dá lugar a uma frase que me assombra: “a realidade se impõe”. Choramingo, faço birra, digo que não precisa ser assim, tão abrupta, essa despedida. Mas não tem jeito – é o custo de se viver, ela explica.
Deixo ela ir, mas sinto os arredores se acinzentarem. Peço, então, que ela mande uma amiga para me consolar. Ela diz que mandará sua irmã mais velha, mais experiente e vivida, mas também um pouco mais difícil de se deixar encontrar.
Desconsolada e abatida pelo mormaço, vejo vindo lá de longe uma mulher que vem como um feixe de luz. Lembro da promessa da inocência e acolho, então, aquela que até então desconhecia: a esperança.