O dia em que meu avô morreu

Giovanna Brito
4 min readMay 28, 2020

Involuntariamente, ao passar por alguma perda, criei o costume de passar horas a fio observando a janela, capturando cada detalhe de como a luz incide nas nuvens, nas telhas, nas folhas, nos prédios. Como se observar cada detalhe me ajudasse a entender as transições de luz no meu interior durante cada processo de perda e de luto.

nascer do sol do dia em que meu avô faleceu
nascer do sol do dia em que meu avô morreu

Há alguns dias, porém, me senti desrespeitada quando o sol insistiu em nascer porque, no meu coração, era noite. Na madrugada anterior, tinha recebido a notícia, pelo telefone, de que meu avô havia falecido numa enfermaria de covid. A notícia me fez sentir como um corpo nu em meio a uma tempestade de gelo, sentia minha pele queimando no frio. Queria me encolher e me proteger da tempestade, mas precisava ligar para meus familiares para dar a notícia, colocá-los na mesma geada que eu.

Acompanhar alguém até a morte é, pelo menos, uma experiência esquisita. A morte não dá explicações. Não diz porque nem quando vem. Não dá um tempo extra para que o indivíduo dê significado a quem foi, ao que sentiu, à sua vida. Na verdade, talvez dê e tudo isso fique resguardado como patrimônio íntimo da pessoa que morre. Bem, de uma forma ou de outra, naquele dia, meu avô morreu. E essa é a parte estranha: se dar conta que continuamos vivos, mas em um mundo que parece diferente do que foi no dia anterior porque mudamos de lente. Com isso, descobri que não importa quantos livros eu tenha lido sobre a morte ou quantos pacientes eu tenha visto morrer, através das lentes do afeto, tudo é vivido de forma nova, diferente e desconhecida até se viver.

Naquele dia, senti raiva do sol e quis permanecer no escuro. Até meio-dia, lutei bravamente contra a realidade das coisas, não queria acordar para um mundo sem meu avô. Até que o mormaço me fez abrir a janela, deixar entrar os ventos dos afetos mandados de longe: presenças reinventadas para que eu suportasse a sensação de que naquele dia algo de mim foi embora. De fato, dividir a tristeza consegue torná-las quase minúsculas no plano de fundo do afeto.

O frescor dos ventos que entraram me fez lembrar dos domingos na casa do meu avô. Lembrei de como eu ficava ansiosa para ver se ele estaria nos esperando na esquina da ladeira em que morava, onde ele passava grande parte dos dias. Talvez, assim como eu, ele gostasse de observar estágios de transição de luz e o movimento da rua. Lembrei dos almoços de domingo, das tardes na sala-de-estar em que ele chupava suas laranjas e assistíamos o programa de Silvio Santos. Lembrei dos finais de tarde, quando eu ia lhe encontrar sentado naquela esquina e ele me dava um ou dois reais, que eu usava pra comprar picolé e confeito e voltava feliz da vida para casa, como se tivesse recebido o melhor presente do mundo. Guardo a luminosidade desses momentos como um tesouro meu e dele.

Entardeceu. Já na tarde de sua vida, meu avô perdeu grande parte de sua cognição e de sua autonomia. Interagia pouco, mas sorria mais. No final da vida, passava a maior parte do tempo acamado. Tinha consciência de poucas coisas, mas lembrava de quem eu era e sempre se alegrava em me ver e saber que teria uma neta médica. Eu ficava feliz de poder lhe trazer um pouco de alegria com a minha presença.

A noite veio como uma recompensa pelo dia transpassado pelo sol escaldante e o sal das lágrimas. Pude, finalmente, descansar meus pés, mergulhar em mim e, no meu íntimo, agradecer a meu avô pela honra de cuidar dele no fim de sua vida, de ir com ele até o fim. Pude agradecê-lo por me ensinar como devo cuidar dos meus pacientes (ainda que eu não compreenda) — a ressignificar o “cuidar deles como se fossem os meus” que tanto tento pôr em prática. De noite, pude acolher a dor de quem sofre porque ama: o luto.

Hoje choveu. Senti, finalmente, que o tempo foi respeitoso comigo.

Aqui dentro, ainda é um pouco escuro e chuvisca. A tempestade passou, mas estou deixando que a água escoe, escrevendo para que os sais decantem e para que o luto, nesse tempo estranho, frio e distante, possa ser reinventado e vivido.

Meu avô, Ayres Ferreira de Brito, tinha 88 anos, 6 filhos e 5 netos, morreu no dia 26 de maio de 2020, com suspeita de covid-19.

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