Por quem os sinos dobram
“Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós” Meditação XVII de John Donne
Há algum tempo, os sinos da igreja eram um importante meio de comunicação, podiam anunciar desde o batismo de alguém, o início de celebrações, até a morte e o anúncio do velório de alguém. Hoje temos meios de comunicação mais versáteis, mas vivemos dilemas humanos semelhantes aos da época de Donne. No século XVII, Donne percebeu aquilo que ainda hoje nos custa entender: quando os sinos dobram (ou seja, batem) para anunciar a morte de alguém, mais do que querer saber quem morreu, importa mesmo sentir em nosso íntimo uma profunda compaixão por recordar que somos parte de uma mesma humanidade, que há uma unidade que se quebra quando um de nós morre e por isso sentimos a dor de cada perda.
Traduzindo para os tempos de hoje: a cada morto pelo covid, parte de minha humanidade morre. Precisamos viver isso com profunda compaixão e só é capaz disso quem quebrou com a mentalidade individualista do nosso tempo que insiste em dizer que não precisamos considerar ninguém além de si em nossos planos, em nossas ações, pensamentos e sentimentos. Só é capaz quem se recusou a viver voltado para si e a se imergir numa vida sem sentido. A pandemia vem escancarar o que diz Valter Hugo Mãe: “A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e parece como um tributo indiferenciado do planeta. Parece como uma coisa qualquer.”
Então, nesse tempo, mesmo que reclusos, ainda estamos vivos, ainda temos em mãos muitas opções de como viveremos: cada morte servirá de alimento para que cresça o medo de eu morrer, de eu me tornar parte desse número, ou me fará pensar sobre como estou gastando o tempo em que estou vivo e saudável? Gastarei meus próximos dias reclamando pelas impossibilidades, alimentando meus sentimentos de falta, ou agradecerei pelas oportunidades de fazer algo que faça sentido para mim e para o outro hoje? Olharei para o número ascendente de mortos com indiferença e negacionismo ou assumirei de uma vez por todas o compromisso de ser humano: a capacidade de se colocar no lugar do outro, sofrer com o outro, ser movido por amor ao outro, de querer ajudar o outro?
A resposta para essas perguntas prescinde uma consciência consciente dos limites, como outrora os sinos nos ajudavam e como hoje diz Ana Cláudia Quintana: a manhã acaba, o dia acaba, a pandemia acabará e também as nossas vidas. O que isso desperta dentro de mim? Como quero ter vivido o tempo que se interpela, inevitavelmente se interpela, na minha frente? Independente de quais sejam as respostas, cabe a você acolher o que surgir dentro de você a partir dessas perguntas. Acolher talvez seja o ato mais importante nesse tempo — porque pode lhe levar a um caminho novo. Em um tempo de frieza e distanciamento, talvez você possa empreender para si o processo de humanização. Sair do medo à coragem (ao agir com o coração), do isolamento à integração, da lógica individual ao coletivo, do olhar voltado para si ao disposto a ajudar o outro.
E então, quando pudermos nos encontrar novamente, talvez tenhamos preciosas descobertas. Mas isso só conseguiremos se usarmos desse tempo para encarar nossa finitude hoje, agora e então todos os dias.