Pra não fingir (mais uma vez) que não vi

Giovanna Brito
4 min readJun 7, 2020

--

Hoje encontrei um amigo que vivia de lavar os carros, na rua de um bairro nobre daqui de Recife, por uns trocados. Não vive mais. Agora sobrevive de pedir a alguns antigos clientes doações de alimento no supermercado da esquina da rua em que ora trabalhava, ora morava, pois já tinha instalado nela seu colchão e os brinquedos do seu filho. É que às vezes o dia era mais duro e tinha que escolher entre o alimento e a passagem de voltar para casa (ir e voltar da periferia com sua família custava pelo menos 20 reais por dia, por mês daria uns 400 reais — se você, assim como eu, não tem essa preocupação de ter dinheiro para a passagem do mês, considere-se privilegiado), ou guardar aquele dinheiro para o aluguel já há meses atrasado. Todo dia recebia ameaças de ser expulso da casa pela dona do imóvel. E por isso acordava: para arrumar algum dinheiro para que seu filho tivesse onde dormir.

Sendo que, às vezes, a vida era ainda mais dura e surgia nele o desejo intranspassável de sair das ruas, da pobreza, dos olhares de pena ou de desprezo (era sempre um desses), mas não tinha pra onde ir. A realidade da rua era sempre a mesma — violenta como ela, fria como ela, impiedosa como ela. Ali se travava embates mais violentos do que conseguimos enxergar. Optava assim, por vezes, por sair de dentro de si. Deixava pra depois as tentativas de domínio de seus dias e entrava no mundo dela. Largava mão das necessidades suas e de sua família, nunca plenamente satisfeitas; das cobranças; do peso de ser um cidadão de bem nas noites em que parecia que o bem não existia e a solidão expunha as suas fragilidades. Assim traiu, com ela, esposa, filho e o fiador que lhe confiaram. Disse a si mesmo e a ela que era coisa só de uma noite. Só um beijo, depois uma transa, depois um relacionamento sério, até que os seus descobriram a traição e lhe deixaram. Disseram-lhe: “de novo?” — poucas palavras, como quem já não tem feições para gastar com o desapontamento. Foram tantas vezes. Ele sempre voltava pra ela. Primeiro, ela era só um cigarrinho, então um cigarrinho com pinga, depois erva, depois pedra. E, na pedra, o fim de seu casamento, o não poder mais ver seu filho crescer, a instalação permanente nas ruas.

Nas ruas, noivou com ela. Estava alucinado. Nem vivia mais por si, só por ela, acordava para trabalhar para comprar mais dela. Estava dividido entre investir nela seu dinheiro e mandar o dinheiro para o filho. Ela era o objeto de seus pensamentos, sentimentos e vontades, mas acabou que o relacionamento não deu muito certo, sabe? Era abusivo. Ela o queria obcecado — tomava tudo dele pra ela, não lhe deixava nada. Afundado no nada, ele não conseguia nem conversar com aqueles que ainda eram seus amigos. Tinha vergonha. Só isso ela não tinha tirado. Então ele se apegou a vergonha.

Hoje me disse que não queria mais saber de droga, estava tentando cancelar o noivado. Queria viver pelas coisas boas, aquilo que vale a pena. E eu lhe disse que eu e ele só tínhamos o hoje e que hoje ele estava vencendo. Me contou também que já estava com uma namorada nova, que era gente boa, que estava morando na casa dela de favor e me pediu leite para os seus sogros tomarem com café. Eu lhe dei leite e bolacha. O momento do café tem que ser respeitado. Queria que ele pudesse ganhar energia para viver cada dia como eu ganho em casa, tomando meu café, segura e afagada. São tempos duros, mas para quem vive da rua o deserto é mais rigoroso.

É uma das verdades mais antigas do mundo que o deserto evidencia e amplifica as lutas interiores. Escancara aquilo que nós, distraídos com a rotatividade dos dias, não vemos e não nos deixamos sentir —pra conseguir lidar, dizemos. Na verdade, acho que não estamos lidando.

Por vezes, incomodada por ter que usar sempre máscara, não tocar no outro, não chegar junto, penso que na verdade estamos descobrindo como é que esse meu amigo se sente todos os dias, desde que nasceu, nessa sociedade de gente estéril que não toca, nem olha no rosto, nem empatiza com o sofrimento de outras gentes como esse meu amigo: preto, pobre, periférico, em situação de rua.

Sei que vivemos desertos diferentes: eu luto todo dia contra meus instintos de autocentramento e autossabotagem — acho que isso é essencial para se viver bem — , mas penso que até isso é privilégio. Pois que meu amigo luta contra o do alívio instantâneo da angústia intrínseca (ou deveria dizer extrínseca?) e outorgada da existência de um homem preto cuja carne só tem valor quando morta e consumida por quem pode comprar. Ele busca a dignidade que sempre lhe fora negada e continua sendo, enquanto ele dormir num colchão numa calçada, e eu na minha cama, embaixo de um cobertor, na temperatura mais cômoda possível.

Ele me olhava da rua, através da grade do supermercado. Há alguns anos o conheço, mas hoje o vi como é: um homem preso às estruturas de uma sociedade que nunca se permitiu incomodar pelos próprios privilégios, que olha com pena ou desprezo, e não tem coragem de se rebaixar, assumir a culpa de ter deixado seu irmão ali, criança ou adulto, na calçada ou no elevador sozinho, esparramado ou espatifado no chão, vivo ou morto — tanto faz.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Giovanna Brito
Giovanna Brito

Written by Giovanna Brito

passeando por aí, partilhando algumas coisas por aqui

No responses yet

Write a response