Quem de nós
Tenho escutado narrativas de sofrimento. Na verdade, passo a maior parte da minha vida escutando histórias de sofrimento.
Tenho escutado: a realidade se impõe.
Algumas cenas do cotidiano parecem confirmar: aquele homem que, desde que voltou a ter liberdade, não conseguiu reestabelecer seus vínculos de afeto, trabalho, saúde. Só quem permaneceu com ele foi o álcool e os ratos que habitam seu barraco. “Você não sabe como é difícil, doutora, acordar e não ter o que comer. Como vou pensar em tratar essa doença que você diz que eu tenho se não tenho o que comer?”
A realidade se impõe.
“Desde que sofri esse acidente, não sei o que é viver sem dor. Metade toda do meu corpo dói. Perdi o emprego, não sou satisfeito com quem sou.” Enquanto fala de sua dor, começa a esmurrar o próprio peito. “Você pode me esmurrar desse outro lado do corpo, mas aqui, desse outro, onde dói, eu não aguento. Já não tenho mais disposição pra procurar um emprego.”
A realidade se impõe.
“Mamãe sempre foi assim. Nunca priorizou os filhos. Tivemos que nos virar sozinhos porque meu pai não prestava. Aos poucos, fomos nos distanciando dela, sobretudo quando ela decidiu cuidar do nosso pai, que sempre a traiu.”
A realidade se impõe.
“Doutora, não quero mais tomar essa insulina. Semana passada a glicose baixou demais, desmaiei e bati o queixo, não tinha ninguém por mim porque minha esposa me deixou” disse o homem que passou anos cometendo violência doméstica com sua esposa.
A realidade se impõe.
“Consegui a guarda do meu filho, mas não consigo ser feliz. Tenho trabalho, mas não me sinto melhor agora que essa questão se resolveu. Não vejo perspectiva de melhora. Tenho tomado doses maiores do rivotril, desisti do antidepressivo.”
A realidade se impõe.
“Minha filha me violenta. Me sinto agredida e desrespeitada dentro de casa. Isso tem tirado minha saúde.”
A realidade se impõe.
Observo, porém, a luta interior de alguns corajosos:
o moço que decidiu cuidar até o fim de sua mãe que tem doença renal em fase terminal, aquela que o negligenciou durante sua vida toda e, para isso, suporta todos os dias as lamentações da mãe, que desconta nele as frustrações das relações rompidas com os outros filhos;
o esposo que espera ansiosamente para dançar a valsa dos 63 anos de casado com sua esposa com câncer de mama terminal e faz de tudo para que essa dança seja possível; a filha desse casal que tem passado os dias arquitetando os passeios para os lugares favoritos da mãe e a levado para comer suas comidas favoritas; a serenidade dessa mulher com seu câncer de mama, vendo a mesa repleta de filhos e uma história de amor que se construiu em comunidade, que se movia lenta e suavemente, como quem desistiu da pressa;
a mulher que bravamente decidiu abandonar seu esposo depois de anos de violência doméstica; a sua filha de 6 anos que vai poder ter outra história para contar;
o senhor que acorda todos os dias para ir para hidroginástica, a despeito da dor imobilizante que sente na perna;
A realidade, sim, se impõe. A gente, porém, teima em recomeçar.
Por onde?
A fé no outro é quem sustenta essa teimosia. Aquela que se encontra, antes de tudo, dentro de si.
Tenho aprendido que não sou protagonista da cura de ninguém. Talvez, nem mesmo protagonista das minhas curas. Tento criar pra mim raciocínios e equações para resolver a vida. A vida, porém, não se resolve, se vive. E só se cura quem vive com coragem de olhar pra si, enfrentar as próprias imaturidades e as negativas que a vida dá.
De dentro, por vezes, só se enxerga o abismo. E as narrativas de abismo são essas narrativas de sofrimento que escuto, durante várias horas do meu dia. A sensação de estar vazio, de não ter forças ou de não enxergar além da muralha que a vida impôs. Ou que nós mesmos nos impusemos.
Um dia, uma amiga me disse: grande erro é querermos encontrar nossas forças fora de nós mesmos. Concordei, plenamente. Entretanto, tenho observado, a partir dessas narrativas, que se nossas circunstâncias podem nos esgotar, também elas, se diferentes, podem nos sustentar.
Lembro daquela cena de 2021 anos atrás: a multiplicação dos pães. Jesus pediu aos seus amigos 5 pães e 2 peixes. Não importava se o pão estava fofo, azedo, mofado; nem tampouco se aqueles peixes eram frescos ou não. Ele pediu aquilo que os seus amigos tinham. E o que ele pretendia fazer era tão grande que nem a expectativa dos discípulos alcançava: alimentar uma multidão. Ofereceram o que tinham, agradeceu e repartiu: transfigurou o que era farelo, fragmento, em alimento. Todos saíram satisfeitos e ainda sobrou.
Essa é a chave: tomar propriedade do que somos, do que temos, mas não parar por aí. Se rodear de quem tem fome e sede e está disposto a dar de si como alimento. Ousar acreditar, mesmo depois da ruptura, que a comunhão é possível. Agradecer — esteja o pão velho ou novo, guardado ou fresco- e repartir. E ver que o fragmento de pão se misturou a outros fragmentos e se transfigurou numa refeição inteira.
Então, concluo que discordo dessa minha amiga. Interiormente, tomamos propriedade de quem somos, mas precisamos uns dos outros pra existir comunhão, para juntar os pedaços de nós mesmos. É que a alma, quando está rodeada de amorosidade, não sente mais vontade de gritar, mas descansa.
Então, quem de nós ousará tomar propriedade de si, se deixará misturar e repartir? Quem de nós, depois da tormenta, ousará acreditar que a vida não se esgota no sofrimento, mas o transpassa?