Teimosia
“Era irresponsavelmente feliz, liberto dessa onipotência que recobre de fúria a excessiva fragilidade” Frei Betto
Pela teimosia de acreditar no Sonho, pelo ideal de que toda vida vale a pena e vale mais do que meu cansaço, inseguranças e ansiedades, ontem, no final do plantão, chorei. Gostaria de falar em primeira pessoa do plural porque, apesar de minha natureza egocêntrica, tenho um coração que anseia por ser muitos, sentir muitos, dar voz a muitos e é ele que se expressa quando escrevo. Nesse momento, porém, peço licença para falar em primeira pessoa do singular por precisar validar dores e afagos que, apesar de serem parecidos com os de muitos, são só meus.
Falo da dor que sinto quando fecho os olhos, me lembro de pessoas que intubei e me dou conta: isso poderia ser evitado. Quando respiro fundo, lembro do olhar de medo e confusão das pessoas no minuto antes de caírem no sono profundo da sedação durante uma intubação. Lembro dos rostos desfigurados daqueles intubados que, horas atrás, eram pessoas, pais, filhos, esposos e se tornaram um leito, um número (seja parte daquela inimaginável multidão de infectados ou da indigerível lista de mortos). Lembro da tristeza e desesperança de quando eu e outros colegas decidimos: está na hora de cessarmos os esforços de reanimação e aceitarmos que essa pessoa morreu. Falo da dor de olhar nos olhos desses colegas e pensarmos juntos, nesse momento, sem dizer: essa morte poderia ter sido evitada. Falo da dor de tentar relaxar os músculos e desfranzir a testa e pensar: será que consegui dar a assistência que essa pessoa precisava? E perceber que, muitas vezes, ofereço uma assistência aquém do necessário com a consciência de não ter os recursos físicos e humanos necessários para o que estamos vivendo na pandemia.
Falo também da dor de ver outros profissionais de saúde que, depois dos óbitos deixarem de caber nos dedos das mãos, entraram na lógica do número. Vendo seus pacientes com seus rostos desfigurados e histórias desapropriadas do seu corpo, num leito de hospital, não veem pessoas, mas 10 exames a serem realizados, 10 fichas de evolução a preencher, 3 procedimentos para fazer, 40 medicações para administrar, menos 12h, mais 300 reais na conta (ou, se tiver o privilégio de ser médico, mais 1000 reais na conta). Não os culpo conquanto que isso não gere negligência, imprudência, indiferença, pois sei do macrossistema que nos leva a esse comportamento, apenas me proponho a mostrar as feridas de quem passou por lugares e pessoas espinhosas.
Pedindo a Deus a Graça de ter um coração de carne, não tem jeito: quando passo por esses lugares e pessoas, sangro. Já tentei ignorar o sangramento e vestir um colete à prova de dor, mas não tem jeito: continuo sangrando. É que é uma dor que fere dentro, naquilo que é essência: quem eu sou como pessoa. A humanidade desprezada do outro, a vida pela qual não se lutou, fere a minha humanidade. Arde no pedaço do meu coração que anseia por bater como um coração só com a humanidade.
Concluo: não tem jeito. Não quero um marca-passo no lugar do meu coração porque não suporto a ausência de uma vida anestesiada. Haverei, pois, de contar com os Céus para acender luz e me dar brisa quando estiver atravessando essa noite nessa terra de cactos. Num ato de fé, continuo vendo tudo ao contrário, o Céu sustentando a Terra.
E, como um afago dos céus, nesse deserto que atravesso, encontrei pessoas que são poços de água fresca, aveludada, que transbordam nos olhos mares de mansidão e, assim como eu, carregam no corpo as marcas dos espinhos que já lhe atravessaram.
Quis ficar, pois, nesse vilarejo de pessoas feridas e curadas e que ainda se deixam tocar pelos que passam por elas. Atravesso desertos espinhosos, mas, quando chego em casa, tiro o jaleco (essa falsa armadura) para aprender a ser vulnerável. Tenho aprendido com um desses oásis na medicina que não preciso sustentar a todo custo o peso da onipotência e a ilusão do orgulho de quem acha que sabe mais e melhor. Posso encontrar na humildade, descobrindo exatamente quem eu sou, a alegria irresponsável de viver inteira o hoje, seja de sangue ou de mar, de solidão ou de festa.