Voltas
“Dentro de mim há uma nascente muito profunda. E nessa nascente está Deus. Às vezes consigo alcançá-la, a maior parte das vezes está coberta de pedras e de areia; a essa altura, Deus está sepultado. Então, há que voltar a desenterrá-lo.” Etty Hillesum
“A vida é dura, muito dura, mas isso não é grave.” Etty Hillesum
“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo.” Guardar – Antônio Cícero
Talvez viva a maior parte do tempo na ilusão de ter pleno controle sobre a vida. Sobre quem sou, meus processos, aquilo que me acontece. Desvelar a ilusão do controle causa desconforto. Interiormente, inicio uma birra contra mim mesma – quero do meu jeito, no meu tempo, da forma que eu vejo e acho certo! Então, como uma revolta, me projeto no passado ou no futuro. Me nego ao momento presente, a essa morada interior que revela as coisas como são: duras, muito duras.
Revogo, ainda, meu local de paz, esse céu interior que se revela quando se transpassa a angústia. Tenho escutado que não sou digna dele. Ainda assim, esse céu se expande interiormente, inundando de paz a tormenta.
Acho que estou enrijecendo. Depois de tanto resistir, estou tentando aprender a ser firme, sem, no entanto, ser insensível. Como diz Etty, rigidez e dureza são propriedades diferentes. A dor enrijece, mas não precisa me endurecer ou me fechar para o outro.
Há que se suportar as angústias para se expor a ser feliz. Estou a desnudar-me, camada por camada, até encontrar as origens. Quem me vê de perto, percebe: estou extremamente vulnerável. Há alguns que se assustam, se afastam. Outros, porém, fazem um manto para me cobrir – por vezes um manto que teceram a partir das próprias dores e dos próprios processos de cura. Vejo a mão suave de Deus tecelando esse manto em cada um deles e então um para mim. Acolho essa angústia cheia de alegria, essa alegria cheia de angústia. Agradeço pela mansidão com que sou revestida por amor e caminho na certeza de não estar só.
Entretanto, há um espaço interior, aquele só meu, onde estou a escavar-me para encontrar Deus. Ali, se travam os mais bravos combates. O primeiro deles contra o Mal. Tenho me esforçado para negar todo o mal interior que me habita. Me esforçado para não abrir espaço para ele, que deseja me tomar pelo ressentimento. Me nego a ser tomada pela raiva, pelo ódio, pelo sentimento de rejeição. Na nascente, há uma fonte de amorosidade e acolhimento que me fortalece para esse combate.
Nesse processo de mudança, tenho me questionado: o que quero guardar dentro de mim? Que tipo de morada interior tenho construído para mim mesma? E para os outros? O que tem me habitado? O que tenho para oferecer a quem entra na minha casa?
Há de se zelar, meu Deus, pela minha casa, que é a tua única. Mesmo que gaste a vida apenas para construir uma morada em que caiba nós dois (e quem mais quisermos convidar). Mesmo que seja só para te ajudar a viver dentro de mim e, assim, a me ajudar a viver minha própria vida. E então ajudar os outros a viverem a própria vida.
Por fim, a vida, na complexidade dos seus movimentos e de nossas ambições, pode ser simples. Como quem constrói uma casa e precisa, a cada dia, guardá-la – guardar a si mesmo, guardar Deus, e então guardar-nos uns aos outros.